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quinta-feira, 1 de setembro de 2016

Minha vó.



 por isabela benassi


as vezes eu acho que a vida gira em torno de um único ponto magnético:
minha avó nasceu sem registro certo, filha de índios e negros. ela não conheceu o seu pai porque ele morreu antes mesmo dela sair da barriga da sua mãe por causa de alguma briga por terras e provavelmente corpos.
depois disso, a minha bisavó saiu fugida desse lugar incerto porque era mulher e negra. ela fugiu tanto que criou seus cinco filhos (sozinha, sempre bom lembrar) cada um em uma cidade diferente do nordeste. infelizmente alguns morreram no caminho.
minha avó, alaide, nasceu em são joão do piauí - no piauí mesmo.
a gente não sabe o ano exato que ela nasceu, porque além de fugir de terras incertas e ter um pedaço de si em cada parte desse país, era comum que as mulheres mudassem suas datas de nascimento pra se casar mais cedo. tanto ela quanto a sua irmã trocaram seus registros pra poder casar – uma aos 16 e a outra aos 14.
mas eu suponho que ela tenha nascido mais ou menos em 1926.
em 1926 comemorava-se 41 anos alegóricos da abolição da escravatura e lá pros dias de 1942 ela saiu de são joão e casou com meu avô, pedro – que não cheguei a conhecer –, pra tentar achar emprego no sudeste.
quando eu era criança eu adorava ouvir a história de como eles tinham vindo parar em são paulo, porque pra mim o piauí era outro planeta de tão longe – hoje em dia eu percebi que o piauí fica não só em outro planeta como também em outro tempo, provavelmente a frente. ela e meu vô passaram três meses viajando até chegar numa cidade minúscula do interior paulista chamada rancharia – pode procurar no google, hoje em dia deve ter uns 20 mil habitantes. ela me contava que em cima do pau de arara costurava roupas a mão e vendia pelo caminho, amarrava tiras de couro pra fazer sandálias, além de desenhar. e ela sempre desenhou muito.
enquanto criava seus oito filhos - um deles é a minha mãe que nasceu em 1964 – ela aprendia a ler e assim aprendeu sozinha. eu criança ouvia ela me dizendo a estudar, afinal ela era a única da sua família que tinha aprendido a ler. meu avô não sabia ler mas me falam até hoje que ele era muito inteligente e amável. não cheguei a conhece-lo porque ele morreu quando a minha mãe ainda era criança, num “acidente de trabalho”, em 1973.
durante muitos anos minha avó ficou perturbada com o que aconteceu com ele e proibiu todo mundo de sair de casa até que os tempos melhorassem. os tempos não melhoraram e ela teve que criar oito pessoas sozinha enquanto as leis e as contas apertavam.
minha vó também ajudou minha mãe a me criar porque os tempos ainda não tinham melhorado nos anos 90. eu acabei crescendo meio sem jeito sob a aura mística que circundava minha vó, junto com toda a suas capacidades filosóficas de contar histórias e de cuidar de coisas – e de curar coisas. ela me curou de doenças horríveis, como a pneumonia e o niilismo. e ai de quem não acreditasse nela...

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